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A morte tem um lado belo

Atualizado: 26 de mar.

Uma condição que alcança a todos, mas é enfrentada de forma diferente por cada um

A morte já me visitou de várias formas ao longo da vida. Por ter levado pessoas que amava ou coisas que eram importantes para mim, por muito tempo associei a ela apenas conotações negativas. Mas será que isso é justo?

 

A morte em minha vida

A primeira vez que a morte me visitou, eu tinha cerca de dois anos. Ela veio por meio do meu irmão caçula, Fernando, que viveu apenas três dias após o nascimento e faleceu em decorrência de uma cardiopatia adquirida durante o parto.


O atraso do médico, que na ocasião estava jogando futebol e optou por terminar a partida antes de atender minha mãe, condenou meu pequeno irmão a não viver por muito tempo.

Por essas e outras, se eu olhar apenas pela perda, é algo profundamente doloroso.


Mas, quando recordo que existe a eternidade, o céu, e que ela não se compara ao tempo limitado do Chronos terreno, consigo ter um outro olhar sobre a morte.

 

A morte é tão ruim assim?

Há comportamentos em nossa sociedade ocidental que fazem com que as pessoas falem pouco sobre a morte ou pensem ainda menos nela. No entanto, esse não é o caminho ideal.

Evitar o sofrimento, não saber o que fazer diante de uma doença ou de um diagnóstico difícil, viver como se nunca fôssemos morrer ou morrer simbolicamente quando alguém parte... tudo isso deveria ser assunto à mesa. A verdade é que a morte não precisa de convite para existir ou nos alcançar. Ela simplesmente chega.


Acompanhei e cuidei da minha mãe por treze anos e percebi a morte se aproximar inúmeras vezes. Por conhecê-la tão de perto, posso partilhar as certezas que ela me trouxe e a beleza que carrega. Sim, a morte tem algo belo que transcende a dor e a perda. Em muitos casos, ela se torna uma possibilidade.


Nem todos vão concordar com este texto, mas ele fala sobre a minha experiência com a morte. Os fatos dessa vivência podem ter aparências unilaterais, mas as interpretações raramente serão iguais.


Em 2012, minha mãe, Antônia, apresentou os primeiros sinais de uma demência rara, que só foi diagnosticada corretamente em 2018. Por anos, foi tratada como paciente com Parkinson e Alzheimer, mas a verdadeira doença era Demência por Corpos de Lewy.

Aos poucos, acompanhei a perda de sua cognição, a memória se esvaindo e o corpo perdendo as forças.


Não há, na indústria farmacêutica, nenhuma medicação específica para essa demência. Então, era a minha mãe e o organismo dela lutando sozinhos.


E foi uma luta honrosa.

Em novembro de 2017, veio outro diagnóstico: câncer de mama.

Ela não poderia ser submetida à quimioterapia, por ser cardiopata, nem à radioterapia, pois usava marcapasso. A opção escolhida foi a hormonioterapia.

Com esse tratamento, teve sobrevida e não faleceu em 2018, como os médicos acreditavam que aconteceria.


Assim que o diagnóstico de câncer chegou, trouxe junto uma certeza difícil de carregar: minha mãe iria morrer. Talvez em 2018, talvez em 2019, ou em qualquer ano seguinte.

Pensar em tudo isso, acompanhada pelo medo, foi devastador.

Até que percebi algo transformador: a pessoa que, teoricamente, estava morrendo era, na verdade, a mais viva de todos nós.


Dona Antônia, ou Totonha, como eu a chamava carinhosamente, era alegre, gargalhava com facilidade, queria experimentar todas as comidas, todas as roupas, desejava viajar e sair todos os dias, se possível.


Se a pessoa ao meu lado, condenada à morte, conseguiu se reconciliar com o fim da vida, quem seria eu para não fazer o mesmo?


A partir de 2019, compreendi que meu olhar para a morte da minha mãe precisava mudar. Era certo que um dia ela partiria, mas naquele momento ela estava viva. E eu não podia continuar em luto por alguém que ainda estava aqui.


Ao tomar consciência disso, tudo em mim mudou.

O que importava já não era o tempo que ela ainda estaria comigo, mas o amor que preenchia esse tempo.


Se ela desejava fazer ou comer algo, eu e minha irmã movíamos o mundo, mas realizávamos seus desejos.


Por seis anos, a morte me rondou diariamente. A cada internação, ouvia frases como: “A hora dela chegou, dificilmente sairá dessa internação com vida.”


Administrar essas falas, essas vozes e todas as incertezas não foi fácil. Afinal, nossa humanidade rejeita a separação que a morte traz.


Mesmo parecendo não haver um jeito exato de se preparar para a morte, hoje eu acredito que viver um dia de cada vez já é uma forma de preparo.


Rir, sair, viajar, comer, assistir a filmes, contar histórias, conversar sobre as coisas da vida... tudo isso é, de certa forma, e talvez a mais concreta, uma maneira de nos prepararmos para a morte daqueles que amamos e também para a nossa própria.


O dia 9 de agosto ressignificado

Desde o ano de 1981, minha mãe não gostava do dia 9 de agosto. Foi nesse dia, naquele ano, que seu pai faleceu.


Mas a morte, além da dor, também pode trazer cura total. Ela sara todas as feridas.

Após 18 dias de internação, chegou o dia 9 de agosto de 2023. Naquele dia, recordei que seria a data em que lembraríamos a morte do meu avô e também percebi a piora significativa do quadro clínico da minha mãe, algo que vinha se agravando desde a segunda-feira anterior.


No fundo, eu sabia que ela não sairia daquela internação. Me revezava com dois irmãos, diariamente, para que ela não ficasse sozinha naquele quarto de hospital. Ela tinha medo de morrer sozinha.


Na segunda-feira, quando a vi muito mal, saí do quarto e tive uma conversa séria com Deus. Eu sabia que só Ele poderia intervir e livrar minha mãe de tanta dor e sofrimento.

Pedi que Ele a curasse?

Não. Na verdade, nunca pedi isso, nem mesmo durante os seis anos em que ela teve câncer. Era uma questão prática. A doença foi um meio de transformação para minha mãe, e eu não queria, por egoísmo, tirar isso dela apenas porque eu não sabia lidar com a possibilidade da sua ausência física.


Naquela conversa, confesso que estava brava, furiosa até. Afinal, Deus nos manda honrar pai e mãe, e foi isso que eu fiz. Cuidei dela e a amei em todos os meus dias. Ela viveu com dignidade. Então até quando aquele sofrimento se estenderia?

Falei para Ele:

“O Senhor ordenou que honrássemos pai e mãe e assim o fiz, mas foi para isso que cuidei dela em todos esses anos? Para ela agonizar agora no fim?

E continuei:

Leve ela, por favor, e cesse com a dor que toma conta dela!

E para finalizar:

Eu sofrerei, com certeza, aliás, já estou sofrendo só de dizer isso, mas o Senhor precisa levá-la para ela descansar e parar de sofrer!”

Nunca levei a sério essa ideia de que não se pode ficar bravo com Deus.

Acredito que, ao expressar minha raiva e falar de forma incisiva, o Altíssimo é o primeiro a entender que só faço isso porque sei que Ele é o único capaz de resolver o meu problema.

A intimidade com Deus é algo profundamente lindo. Podemos dizer o que pensamos, o que sentimos, e ainda assim somos acolhidos por Ele. Simples assim.


A última conversa que a morte me deu

Naquela manhã de 9 de agosto, fui ao hospital com a consciência de que minha mãe estava prestes a partir. Sabia que poderia acontecer a qualquer momento.

Sabe o que é curioso? Por termos conversado tanto durante a vida, naquele instante eu não sentia que havia algo não dito. Nenhum arrependimento me roubava a possibilidade de uma despedida serena.

Apenas reforcei o que já havíamos conversado tantas vezes:

“Mãe, se a senhora sentir que Deus a está chamando, vai! Ficaremos bem, mas vai se encontrar com o Deus que a senhora tanto amou e vai “matar” a saudade que sente dos seus pais que já estão a aguardando lá no céu”.

Dizer isso foi e continua sendo libertador, porque me deu a consciência de que minha mãe não me pertencia. O que era meu, e sempre será, é o amor dela. E esse amor viverá eternamente em mim.


Às 15h20, ela partiu para a eternidade.


Foi uma mistura intensa de sentimentos. Enquanto ela estava viva, imaginei sua morte um milhão de vezes. Mas posso garantir que, quando a certeza da partida chegou, nada do que imaginei representou sequer cinco por cento da realidade.


Literalmente faltou o ar, e um buraco se abriu no peito.

Cheguei ao quarto, abracei seu corpinho ainda quente e chamei meus dois irmãos para um momento de oração. Senti um desejo profundo de agradecer ao Anjo da Guarda da minha mãe pelos 69 anos em que cuidou dela, livrando-a de perigos que ela mesma desconhecia, e por tê-la conduzido ao céu naquele momento.


Há coisas que só a alma compreende na hora da morte.

Praticamente todos os funcionários daquele setor vieram nos dar os pêsames. Estavam visivelmente tocados e diziam nunca ter visto filhos tão amorosos, que jamais deixaram a mãe sozinha, nem por um segundo.


E foi exatamente ali, naquele instante de despedida e gratidão, que tive a resposta à oração que fiz na segunda-feira:


“Por que ela tinha que sofrer mais ainda do que já havia?”

Porque a vida da minha mãe pertencia a Deus, e Ele, em sua bondade, usou aquele momento de dor para gritar ao mundo que ainda existem filhos que honram seus pais, que renunciam à própria vida para cuidar deles.


Percebeu? Com Deus, nunca fiquei sem resposta às minhas orações.

Mas ela morreu no mesmo dia em que meu avô e em uma data que ela detestava. Deus foi cruel com isso?

Claro que não. Deus é aquele que cura o corpo, a mente, a alma e o espírito, até no último instante de vida.


Foi em 9 de agosto de 2023, exatamente 43 anos após a morte do meu avô, a pessoa de quem minha mãe mais sentia saudade nesta vida, que ela se reencontrou com ele.


Existe significado maior que esse?


Naquele dia, Deus curou a maior dor da minha mãe: a separação de seu pai.


A morte concede o renascimento

No dia 10, me afastei do caixão em duas ocasiões. Precisei ir ao cemitério verificar se a exumação da minha avó, que havia sido sepultada ali anos antes, estava em ordem e se o túmulo já estava preparado para o sepultamento da minha mãe.


No fim do velório, fiz mais uma oração. Louvei a Deus e agradeci à minha mãe por ter me amado tanto, por ter me ensinado lições que jamais esquecerei e, principalmente, por ter sido grande em saber sofrer. Ela me ensinou que, quando abraço o sofrimento, ele me transforma, pois toda dor que chega à minha vida tem uma função ou missão.

Naquele dia, enterrei a pessoa mais importante da minha vida e, junto com ela, uma parte de mim.


Mas a Vanusa que foi ressurgindo após aquele sepultamento é fruto da obra de Deus e do amor da minha mãe. A mesma mãe em cujo colo eu descansava, mesmo sendo adulta, e que agora está onde não há dor, nem tempo, nem barreiras para o amor.

 

Conclusão

A dor da morte, se não for vivida com profundidade e transformada, tem o poder de destruir quem fica.


Mas onde está, então, a beleza da morte?


Está em tudo o que escrevi até aqui: meu familiar não me pertence, o sofrimento é capaz de transformar quem se permite tocá-lo, a vida ganha um tom completamente diferente quando se tem consciência de que um dia ela acaba.


O “eu te amo” dito diariamente ganha mais entonação, mais verdade. Ao viver um processo de morte, descobrimos onde realmente está a nossa fé. E, acima de tudo, percebemos que só existe um lugar verdadeiramente seguro para guardar quem amamos: o céu. E para chegar até lá, só existe um caminho, segurar firme nas mãos da morte.


A maior beleza que a morte carrega é saber que, do outro lado dela, está Deus. O mesmo Deus com quem falei bravamente dois dias antes da morte da minha mãe... e que me ouviu.

 

Vanusa Reis, da Redação

 

 

 

 

 
 
 

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